I
cidades que irrompem da terra escura
como árvores pintadas…
cidades efémeras
cidades incrédulas
cidades paradas no sopro da tarde
cidades inventadas de poeira fina num deserto roxo
cidades de sonho
cidades de sombra com luz por dentro…
cidades esmagadas e habitadas por mulheres de sal
cidades traçadas sobre um rio de mármore
cidades de deuses redentoras dos homens e das outras cidades
cidades esculpidas
cidades antigas de jardins suspensos num lago de sonhos
cidades de pássaros
cidades fantasma
cidades esquecidas no bolor dos tempos
cidades nascidas na poeira do nada…
cidades santas com pedras em sangue
cidades invisíveis com nome de Cloé, Zirma e Octávia
cidades distantes
cidades de luz
cidades de água…
II
a cidade descoberta sob a branca luz da tarde…
…mesmo ao lado dos campos e das águas.
de longe não lhe vemos os abismos nem os ruídos
nem os cinzentos que lhe atravessam as ruas e as praças…
são de cristal os prédios e campanários
límpido e puro o seu recorte…
ficamos a olhá-la longamente… até nos arderem de espanto os olhos…
III
nas ruínas da cidade permanece a poeira das memórias…
séculos e séculos de reencontros
e traições e abandonos…
e sonhos apunhalados…despenhados do alto das suas torres
sobre um rio que atravessa imperturbado…
e à noite na penumbra de muitas vozes
há deuses de pedra caminhando com leveza sobre o tempo
enquanto as aves famintas lhes dilaceram os olhos…
vejo-os do alto do meu prédio entre lápides e ciprestes…
estendo as mãos e saúdo o exército que irrompe do nada
desalinhado e fúnebre na cidade novamente sitiada
depois afasto-os com um gesto breve
mesmo a tempo de me salvar das suas hostes…
IV
na cidade cansada as ruas desfazem-se lentamente dos seus mistérios
e erguem-se intactas e lavadas da terra escura
ao lado das tílias e dos jardins tratados…
porque amanhece…